domingo, fevereiro 24, 2008

José Berto por Victor Rui Dores

"Guardo da minha adolescência terceirense as mais vivas recordações de um homem deveras singular: o José Berto, figura incontornável do meu imaginário afectivo.
Nascido em 1933 na então freguesia da Praia da ilha Graciosa, o José Berto frequentou o Liceu de Angra e, mais tarde, concluiu, com distinção, o curso de piano no Conservatório Nacional de Lisboa. Entregou-se à música de alma e coração, tendo exercido actividade docente em Angra do Heroísmo e na Praia da Vitória. Nos anos 50 e 60 do século passado, fez parte da Orquestra Filarmónica de Angra e foi presença assídua nos Serões Músico-Literários nas Festas de São Tomás de Aquino, no Seminário de Angra do Heroísmo. Privou de perto com gente da cultura angrense, como o investigador João Afonso, o poeta Emanuel Félix, ou o pintor Rogério Silva. Também se dedicou ao teatro e à poesia e, sobretudo, à boémia… Embriagava-se de vida e costumava dizer: “A noite da boémia tem que ser verdadeiramente sentida, gozada, amada”…Ah, o José Berto! Estou a vê-lo nos bailes do Liceu de Angra a fazer a sua “perninha” com os conjuntos musicais “Os Bárbaros”, “Flama Combo” ou “O Açor”, cantando com emoção poética:
“Saudade dessa mulher
Meu peito sente…”
Para nós, estudantes com sangue na guelra, aquela música (da sua autoria) era um “slow” dos bons, daqueles que, como se então se dizia, dava para “esfregar a cavalinha” com as meninas que se deixavam apertar no calor escurecido da noite…
Já então o José Berto era um nobre vagabundo, desbocado e desprendido dos bens materiais, dilemático e dialéctico, boémio e insolente, fumador feroz, filósofo de barbas e rebeldias… Temperamento de génio incompreendido, homem de talento desatento – apenas conhecido pela estúrdia das suas noitadas e por ser o autor do hino do “Lusitânia”.
Recordo também as animadas viagens inter-ilhas, a bordo do “Ponta Delgada”, com o José Berto a arrancar do seu acordeão noctívago belíssimas melodias e a beber quantidades industriais de vinho…
Mais tarde, já aposentado, o José Berto fixou-se na ilha Graciosa. E quando eu lá ia de férias, encontrava-o à mesa do café junto à praia, à conversa com os amigos, de cerveja à boca, sempre susceptível, judicioso, penteado de maresia e de barbas pensantes, com aquele sorriso de secreta ambiguidade. Continuava igual a si próprio: insatisfeito e contraditório, incómodo e incomodado, dotado de uma consciência crítica e de uma visão cáustica sobre os outros, inteligente, perspicaz e universal da vida e do conhecimento das coisas.
Boémio por condão e por gosto, quando ele estava com o “astral” puxava do retumbante acordeão e animava quem o quisesse ouvir. E com ele mantínhamos longas e bem dispostas conversas vadias… Costumava ele contar episódios das turbulentas viagens que empreendera por terras americanas, bem como das tocatas em insólitas paragens das Caraíbas e Vietname – e assegurava-nos que havia tocado para um tal D. Gergoliani, chefe da Máfia americana…
Um dia, sob o efeito de uma tremenda bebedeira, ele passou uma tarde inteira a tentar convencer-me que Jesus Cristo era um extra-terrestre… Depois passava por fases de alucinação satânica, ou de inquietações religiosas e metafísicas. Dizia a todos que tratava Deus por tu… E dividia os homens em cinco categorias: os boémios, os alienados, os idiotas, os cretinos e os loucos.
O José Berto tornara-se um homem cercado e atormentado, náufrago de si próprio… Viveu os últimos anos da sua vida misturando música com bebida, boémia e poesia. Vítima da chacota dos outros, nunca perdeu um certo sentido de dignidade. Três anos antes de a cirrose o levar, publicou um belíssimo livro de poemas: Mar de Escamas (edição da Câmara Municipal de Santa Cruz da Graciosa, Angra do Heroísmo, 1997), em que fala do destino da vida humana no teatro do mundo. Atento ao desconcerto do mundo, e questionando Deus, o Homem, a Solidão, o Ser e o Não-Ser, o autor denuncia a falsidade, o fingimento, a hipocrisia e o egoísmo dos homens e renuncia ao quotidiano comezinho e à trivialidade da vidinha. Vivendo no microcosmo da ilha-mãe, o poeta parte então em busca de uma harmonia, de um deus ex-machina, escrevendo versos certeiros que são de raiva e ternura, de amor e ódio e questiona o triunfalismo científico:
“O último invento matou o teu filho”. (pág, 55)
A última vez que vi o José Berto fiquei com a sensação de estar perante um barco velho abandonado no cais… A sua decadência física era visível: envelhecido, a pele macilenta, os olhos baços, as longas barbas a escorrerem cerveja, sujidade e desolação… A solidão pesava-lhe como um fardo. Foi a sua fase negra, sórdida, macabra e grotesca. Mas não perdera a enorme lucidez. Falou-me que tinha pronto para publicação mais um livro de poesia, cujo título seria: Quando os mortos vierem fardados. E citou-me estes versos que mostram a sua alma de poeta:
“Ai o músico
se poeta sente
ai o poeta
se músico consente”.
Era assim o José Berto – músico e poeta, um homem bom que se deixou enredar nas vicissitudes da existência e derrapou no plano inclinado da vida."
Autoria: Victor Rui Dores, publicado na revista do Diário Insular

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Ainda os livros...

A propósito de livros, apresento em seguida uma pequena lista sobre alguns dos livros mais significativos que se escreveram sobre a Graciosa desde o século XIX:

Memória Estatistica e Histórica da Ilha Graciosa, de Félix José da Costa, publicado pela primeira vez em 1845 e reeditado em 2007. Este livro é a primeira monografia escrita sobre a ilha branca e traça um quadro bastante completo sobre a sociedade Graciosense do século XIX, debruçando-se sobre ínumeros aspectos, desde a História à industria.

Ilha Graciosa Descripção Histórica e Topographica, de António Borges do Canto Moniz, publicado pela primeira vez em 1883 e reeditado em 1981. Este trabalho segue a linha do anterior, ainda que tenha a vantagem de se debruçar mais sobre as gentes e a História da ilha, do que sobre os números com que se alonga Félix José da Costa. Ainda asim não supera a obra anterior.

A Ilha Graciosa de António Brum Ferreira, publicado em 1968 e reeditado em 1987. Este trabalho é a meu ver a melhor monografia que se escreveu sobre a Graciosa, acresce o facto de ter sido escrita por um dos mais importantes geógrafos portugueses da actualidade, na altura ainda estudante universitário. Além de bem escrita é bastante completa, incidindo sobre a geologia, a geografia, a demografia, a história e a economia da ilha. Passados 40 anos desde que foi publicada continua bastante actual em ínumeros aspectos. Imprescindível mais do que qualquer outro livro para quem queira aprofundar o seu conhecimento sobre a Graciosa.

Ofícios Antigos Subsistentes nas Ilhas dos Açores: Graciosa, de F.P. de Almeida Langhans, publicado em 1988. Trata-se de uma recolha etnográfica feita em ínicios dos anos 80, sobre ofícios que naquela altura estavam a desaparecer. É apresentada sobre a forma de entrevistas e fotografias. Um livro que dá gosto de ler, não só por ser um valioso documento mas para rever caras que há muito não vemos: artesãos e artistas (mas sobretudo pessoas) que tanta falta nos fazem.

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Livros

Numa pequena aldeia do Alto Douro, o meu segundo lar, encontrei um livro sobre o meu lar... Entre uns quantos livros calados numa estante muda de uma acanhada biblioteca vi um que conheço bem: as letras amarelas do titulo gritavam, destacavam-se na capa negra : "GRACIOSA - As tradições e paisagens e uma ilha". Um pedaço da minha ilha, ali, no sítio onde menos esperava... Se um livro percorre tantos quilómetros é por que merece...
O livro do padre Norberto Pacheco é uma das melhores obras que se pode encontrar sobre a nossa ilha, as fotografias recolhidas são uma porta aberta para um passado já distante, outros tempos e outras caras, para uma Graciosa antiga e rural que mudou tanto em tão pouco tempo.
Folheei o livro, aliviei a saudade, triunfante apontei para a capa e disse aos amigos que me aconpanhavam : " A minha Graciosa!".

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

O museu...outra vez






O centro histórico da vila de Santa Cruz é um dos mais belos e harmoniosos conjuntos arquitectónicos de Portugal. A sua antiguidade é relativa; muito dificilmente encontraremos um edifício que seja anterior ao século XVIII, a própria Câmara Municipal terá pouco mais de 120 anos como o atestam fotos datadas do ultimo quartel do século XIX. O que hoje temos são construções e reconstruções feitas nos ultimos 3 séculos e entre elas um ou outro edificio que pela sua traça mais simples sugere uma construção mais recuada. As ruas, os largos e a praça, essas terão permanecido idênticas, pese os sucessivos melhoramentos.

Ao longo dos anos procurou-se respeitar o que estava construído, tendo em atenção as caracteristicas arquitéctónicas do conjunto, contribuindo para a criação de um núcleo bastante homogéneo. Durante dois séculos a fisionomia da vila pouco terá mudado, até hoje. O edificio do museu vem cortar com tudo o que até agora se construiu na vila, vem contra o que a legislação dita e é ofensivo para os Graciosenses. Não critico o projecto, ficaria bem noutra parte qualquer, não entre as casas do centro de Santa Cruz; Ofende-as na sua altiva nobreza, na sua beleza sombria. Assim não estamos á altura do que no legaram os antigos, se for esta a marca que vamos deixar, então mais vale deixar que aquele muro continue ali, ao menos não ofende.



domingo, fevereiro 03, 2008

Fotos Antigas - Graciosa Acores -

Uma excelente montagem que circula no Youtube, com fotos antigas da nossa Graciosa... (tomo a liberdade de a aicionar a este blog, com a devida vénia ao autor)

sábado, fevereiro 02, 2008

Memórias de pedra - os fornos de telha


Os fornos de telha foram durante décadas a principal indústria da Graciosa, uma actividade de capital importância para a economia de uma ilha que sempre subsistiu dos dividendos da agricultura e da pecuária; muita da telha era exportada para o grupo central durante o verão nos velhos iates de cabotagem como o Fernão de Magalhães e o Espírito Santo.
A eira da Rochela (na foto) foi uma das ultimas a produzir telha e fechou na década de 80. O caminho que conduz ao porto, então em construção, rasgou-a e destruiu algumas das estruturas de apoio ao trabalho dos telheiros.
Hoje em dia os fornos de telha, dos quais todos nós já dependemos, encontram-se esquecidos.... situação lamentável pois são parte da nossa memória colectiva...Numa época em que tudo é passível de ser musealizado ou integrado em acervos etnográficos, para quando musealizar pelo menos um dos fornos da Rochela, ali tão perto de uma das principais portas de entrada na ilha Branca ?
(Já tinha publicado este texto neste blog, mas nunca é demais lembrar...)

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Bruxas e Lambuzões

Nas matanças do porco, no fim dos jantares, enquanto se decidia os pares para a sueca ou se contavam as pedras de dominó, o meu tio, (sentava-se no mesmo canto da mesa em todas as matanças) lembrava-se de desfiar umas quantas histórias de bruxas, lambuzões e diabretes. Sentava-me sossegado a ouvi-lo, não que naquela altura tivesse interesse no rol de seres malditos que ele enumerava, mas por medo; depois de o ouvir falar do filho do Faustino que era lambuzão, da Olga que era feiticeira e dos diabretes que iam dançar para a caldeirinha, já não me apetecia ir lá p´ra fora brincar com os meus primos, pelo menos naquela noite.
Estas histórias de bruxas, a mais pura e significativa das tradições orais de um povo, estão a perder-se irremediavelmente, substituídas por uma mitologia que nunca foi nossa. Um sinal dos tempos. Se antigamente a imaginação popular compensava a falta da televisão, hoje não nos podemos dar ao luxo de nos sentarmos à mesa e ouvir uma boa história de arrepiar, já nenhum filho mal nascido é lambuzão, os diabretes já não bailam na Caldeirinha e a Maria Encantada morreu.