quarta-feira, maio 12, 2010

Beatas

Havia, na minha rua - como em todas as ruas de todas as terras - beatas. Vestidas de preto, crucifixo nas mãos, andar célere para não se atrasarem para a missa das seis e ladaínhas sussuradas entredentes a invocar um qualquer santinho da sua devoção. O seu ar inquisitorial assustava-me mais do que tudo. Parecia que a qualquer deslize, a qualquer desvio de comportamento ou falta á catequese, estas Torquemadas podiam mandar-me para a fogueira como herege. (Não mandaram, mas acabei por levar muitos puxões de orelhas à conta do que essas velhotas contavam aos meus pais.)
Falavam amíude de Jesus, de São Pedro, de Nossa Senhora de Fátima, do senhor padre, das Festas de Santo Cristo, mas mais do que tudo, falavam da vida dos outros. Sempre vi o conceito de beata como parte integrante do conceito de alcoviteira. Eram exímias nessa suprema arte de inventar e lançar boatos, em falar mal deste e daquela ao mesmo tempo que me tentavam impôr os dez mandamentos. Enquanto rezava uma avé-maria, uma beata conseguia infringir pelo menos metade dos dez mandamentos.
A sua ingenuidade, aliada ao facto de se acharem versadas na interpretação da Bíblia e da hagiografia cristã, tornava-as tremendamente preconceituosas. Contra quase tudo e contra quase todos. Bastava ser diferente.
Hoje lembrei-me dessas beatas. Estava num mini-mercado de uma pequena aldeia, compras em cima do balcão para pagar, dinheiro na mão, quando entrou um negro. A dona da loja, velhota, vestida de preto, crucifixo a baloiçar atrás do xaile, seguiu-o com os olhos. O homem despareceu atrás de uma estante e a senhora apressou-se a sair do balcão e foi vigiá-lo. O homem voltou com um pacote de bolachas, deu-lhe uma moeda e saiu. Enquanto punha as minhas compras no saco, soltou um "estes pretos ainda são pior que os ciganos, valha-me Deus!". Enquanto eu saía, a beata colou os olhos ao velhinho televisor. Estava na hora da missa do Papa.  

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