segunda-feira, abril 25, 2016

Da Vila da Praia

A Praia foi a primeira povoação que se fez na Graciosa, beneficiando desde logo da sua posição geográfica e de um excelente desembarcadouro sob a forma de um areal que nos inícios da década de 60 do século XV seria decerto muito mais extenso do que hoje. Em pouco tempo surgiram as primeiras casas e os primeiros caminhos em redor da pequena ermida de São Mateus, então bastante diferente da que hoje conhecemos.
Espalhados pelo interior e derramando-se pelo litoral começaram a surgir outros pequenos núcleos de povoamento, dos quais a Praia parecia destinada a tornar-se capital. A chegada do primeiro Capitão do Donatário alterou o que parecia já uma certeza e ele preferiu estabelecer a sede da sua capitania na outra banda da ilha. Assim nasceu Santa Cruz. Não é difícil de acreditar que a rivalidade entre as duas localidades remonte a esses séculos já longínquos.
A Praia, ainda que dotada de boas condições geográficas encontrava-se estrangulada por algumas das terras mais difíceis da ilha, entre o "salão" da Caldeira e os "biscoitos" formados pela lava do pico Timão. As suas capacidades agrícolas, aos contrário de Santa Cruz, pareciam bastante limitadas.
A 1 de Abril de 1546 D. João III eleva a Praia a Vila em virtude dos seus moradores se acharem prejudicados em relação a Santa Cruz. A nova circunscrição abrangia também o que é hoje a freguesia da Luz.

"Querendo fazer graça e mercê aos moradores do dito lugar da Praia, eu por meu moto próprio faço o dito lugar vila, e eis por bem que daqui em diante para sempre o seja e se chame vila da Praia, e aparto e desmembro da vila de Santa Cruz e de sua jurisdição de que até agora foi e lhe dou e concedo o termo seguinte, a saber: toda a freguesia da dita vila, que é da cruz do Quitadouro e daí pelo espigão do grotão da serra da Irmida contra a vila ao mais alto da dita serra, e daí direito ao castelete, que é na rocha do mar, e daí á roda do mar até tornar á dita cruz do Quitadouro (...) e assim eis por bem e me apraz que daqui em diante a dita vila da Praia e moradores dela e do dito termo não sejam obrigados a obedecer á dita vila da Santa Cruz. (...) e os moradores da dita vila da Praia poderão levantar e pôr forca e pelourinho e ter bandeira e selo e as outras insignías que tem as outras vilas de meus reinos (...)."
in Arquivo Nacional, Chancelaria de D.João III, livro 43, folha 25 v (adaptado)

Fotografias da Graciosa : Vila da Praia


A Vila da Praia, que cheira a maresia, cresceu tímida entre o azul e o verde nas costas de um areal benigno - o único da ilha - tão mal tratado nos últimos anos. E quando a areia se some, a vila esmorece e os Verões são tristes e só então apercebemo-nos da falta que ela faz. 



sábado, abril 09, 2016

vinho novo


Cabia a cada geração zelar pelas pedras postas pela geração anterior, arrancar a vinha velha atarracada e plantar pés novos e sadios, continuar a podar, a cavar, a fazer curas contra as maleitas, como fizeram os seus avós e os seus pais, como hão-de fazer os seus filhos. Mas bastava que as vagas de mar se levantassem num dia de vento e a ressalga açoitasse sem clemência as terras baixas, para que a vinha se queimasse e o ano estivesse perdido. Os homens, de grandes mãos sábias e tez curtida pelo sal dos anos voltavam aos currais de vinha geometricamente dispostos em ruas fundas, voltavam a erguer as paredes de pedra solta, com paciência e com resignação, como se Sísifo pudesse empurrar mil pedras e cumprir o martírio de uma só vez. Voltavam a cavar e a podar e a cavar outra vez. Nos dias de sol, em que o mar é só mar, a resignação tornava-se esperança e entre o basalto aquecido pelo sol, sobre a terra gerada sobre as cinzas de um vulcão, despontava um rebento: um cacho verde, duro e liliputiano.

Se o mar não se inquietar, há-de crescer redondo e rubro até Setembro, será colhido em cestos de vime a escorrerem mosto sobre a serrapilheira posta sobre as costas dos homens e há-de chegar ao lagar em carros de bois a chiar com o peso da dorna. E ali à luz de um coto de vela que se derrete na tardinha, outro milagre - talvez o maior dele todos - quando a rocha se transformar em vinho e quando o labor destes ourives encher as velhas pipas que resfolegam com a abundância. Vinho novo.